sexta-feira, dezembro 08, 2006

Depois da meia noite, mas longe do sol nascer.

Quem dirigia era a irmã, que fazia tempo não fumava. O irmão na frente, mas meio que virado pra trás, conversando com a amiga dos dois: mas, Caio, vou te dizer, sabe qual é a melhor coisa que tem depois de fumar? É transar, pense: tu sente tudo ao extremo, o que vem na cabeça chega lá no dedão do pé. Aí, ele pensou: "Que porra é essa? Essa dona tá me queixando?" Tentou desconversar. Pois é, comer também. Porque dava fome e tal; a famosa "larica." E ela não desconversou, não. É, mas come antes, durante e depois.

O carro era um Gol vermelho.

quinta-feira, novembro 02, 2006

In memoriam

Aconteceu num sofá largo, esverdeado. O avô sentou na extremidade esquerda; a avó, na direita. Ambos estavam com os caçulas no colo; os pais e mães se alternavam no meio, enquanto as meninas se posicionavam de pé, com cuidado para não ficar na frente de ninguém. Todos espremidos, menos uma das tias, que tirou a foto.

Houve outras fotografias como aquela. Mantivemos nossas posições, embora a família houvesse aumentado; alguns tiveram de sentar no chão, e a filha mais velha sentava agora no lugar do nosso avô, que falecera há sete anos. A tia que tirou a primeira foto apareceu em todas as outras: pedíamos a um empregado que as tirasse, ou a um fotógrafo contratado.

Me lembro de uma família numerosa, com dezessete pessoas, de pais, mães e avós a filhos, primos e irmãos. Todos haviam brincado juntos, e ceado juntos, e crescido juntos, e numa certa noite de natal, todos posaram juntos para uma foto.

domingo, setembro 10, 2006

Talvez.

Talvez;

Talvez,

terça-feira, agosto 08, 2006

Ele fugiu novamente, fugiu de mim:
Quero e não quero; quero, mas não quero; não quero querer: desejo-o, sim, com toda paixão; nada mais que um significante vazio acordo no espelho do banheiro e tenho medo; medo de dentro, do que posso não encontrar; o que pode acontecer se não encontrar nada aqui dentro? Talvez ele fuja novamente, talvez não se importe. Não tenho certeza, não sei.

Crucial: O que pode acontecer?

Marj, Marj... I know how to go through the motions - but I'm hollow, a fraud. I'm only half a man!
John Constantine

segunda-feira, agosto 07, 2006

Onda e onde. No meu olho esquerdo, eu vejo o mar e onde ele acaba.

Direito: eu vejo um lugar onde não sei: queria escrever onda, acabou saindo onde; talvez eu quisesse me afogar, mas em outro lugar. Talvez um afogamento metafórico, desses que a gente vê na tevê; desses de mentira, que dá pra voltar atrás, que dá pra desmentir; dessas mortes que provam que a vida tem porquês e causas e quandos e ondes e ondas.

No meu olho esquerdo, observo o mar e espero ele entrar dentro de si mesmo novamente. A água está morna.

domingo, agosto 06, 2006

Caros presidentes dos países amigos,

Venho por meios desta apresentar-lhes aquela de ontem; aquela, que eu esqueci o nome, aquela! Vocês sabem qual é.

Último parágrafo.

quarta-feira, julho 05, 2006

Nostalgia

sa:u.da.de sf. Lembrança nostálgica de pessoas ou coisas distantes e extintas.

nos.tal.gi.a sf. 1. Saudade da pátria. 2. P. ext. Saudade.

sa:u.da.de sf. Lembrança nostálgica de pessoas ou coisas distantes e extintas.

terça-feira, julho 04, 2006

Lembranças de mil novecentos e sessenta e oito.

- Eu estava em Praga, quando de 68. Tudo aconteceu muito rápido, lembro pouco: derrubaram meu cigarro, as estruturas não desciam às ruas e não havia um táxi na rua. Tanques aos montes, mas nem sei se esta certeza é verdade. Não precisa ser para o que eu desejo criar, nem precisa de fazer sentido daqui da onde eu estou olhando. Como os começos do Rosa.

...Fazia muito frio, e eu estava sem cueca. Ninguém usava cueca. Eu havia esquecido a minha dentro da gaveta. Talvez por isso nenhum táxi apareceu. E o tal tanque se imiscuiu tão extraordinariamente no meu caminho.

(Ah, e o meu gato. Está tudo bem com ele: estava dormindo em cima da cama pela manhã, e no meu colo de tardezinha.)

sábado, julho 01, 2006

Quando. Quando não. Quando tem tempo, eu quero sair do tempo, quero levar um susto: quero pegar sarna, passar remédio barato, passar sabão côco e ficar boa como antes eu ficava boa. Antes doença. Não, antes também tem tempo, coisa que eu já disse que não quero. Também não quero eu. Bando de armadilhas. Eu quero dizer sem fascismo. Mas não quero que seja eu a dizer. Talvez o outro, quem sabe...

Mas. Porém. Inconcebível. Um barômetro pra medir o grau de liberdade do meu ouvido. Depois - depois tem tempo, é que não resisti - eu... Deixa pra lá.

Não tenho a menor intenção de fazer sentido por ora. Nem de jogar bonito. Quero chutar a gol.

quinta-feira, junho 29, 2006

Nos EUA.

E o gato subia no colo dela, mas tinha que terminar aquela matéria pra ontem. E as gotas de água batiam na janela. Queremos entrar!, diziam. Não podem! I have to finish this first! É que ela morava nos Estados Unidos já faziam três anos, e havia descoberto que as gotas de lá - inclusive as da pia - só entendiam os english da vida.

O gato era brasileiro. Ela, de Sorocaba, que eu nem sei onde fica.

A matéria não deu pra me ver, nem ler: não me deixou entrar.

sexta-feira, maio 19, 2006

Tinho que falar com vocês, porque não agüentei ficar longe daqui, tão bom aqui, né? Se lembram de quando a gente chorava, sem saber o porquê, mas depois tudo ficava bem a gente ia lá e fazia de novo? Só pra ver o que ia acontecer? Lembram? Bons tempos, e eu nunca quis que eles acabasse,, por isso que eu voltei. Obrigada.

Não, não, não fui tão longe assim. Só tinha que sair, conversar com o povo, entender o que se passa no mundo. Acabei sem saber mais, mas voltei de outro jeito, com menos cabeça e mais olhares. Tô bem empírica agora.

É só isso mesmo, por ora, tá bom? Pode avisar pras outras - ou eu mesmo aviso, se tiver tempo e coragem - que eu tô bem e que eu acho que sei o que fazer da minha vida. Um beijo.

sexta-feira, abril 14, 2006

Fábula sem pé nem cabeça.

Há muito tempo, quando ainda havia pessoas que sabiam das coisas, num reino distante, morava, sozinha, a menina sem gratidão. Todo dia, alguém vinha, e deixava comida na porta da torre, e ela sabia que sempre que abrisse a porta àquela hora, iria encontrar um prato bem gostoso: macarrão, pizzas, bananas, maçãs - às vezes, tudo misturado. E acreditava que tudo aquilo era só pra ela, que era mágica.

Mas era o jovem mensageiro quem sempre pagava o pato. Ou prato: não ganhava gorjeta, passava um tempão esperando alguém vir pegar a entrega, e nunca ninguém chegava. Ia embora, mas no outro dia, o prato havia sumido e lá ia ele explicar pro cozinheiro que alguém roubara o prato. Mas como você me perde um prato cheio de tanta comida, rapaz?! Mas não há ninguém naquela torre, senhor! Nunca vi ninguém lá, nem pela janela, nem à porta! E o senhor ainda me paga pouco e eu tenho que andar dez quilômetros todo dia, pra deixar comida pra ninguém! A culpa não é minha!

Nunca mais se ouviu falar do jovem mensageiro, depois desta discussão. E a menina do alto da torre amaldiçoou deus e o mundo. Morreu de inanição, sozinha, com os ratos, do alto daquela torre escura, numa noite de chuva parca.

segunda-feira, abril 10, 2006

O cadernim.

Foi atrás daqueles caderninhos de anotações, que o último tinha acabado, só algumas folhinhas no final. Tinha que ser daqueles peuqnininhos, pocket, de poder levar mesmo no bolso, pra sacar na hora que a Hora se cristalizar em galhos, em olhares, em ruas. Os caderninhos são pra agarrar o rastro de poeira do instante.

Os instantes são os nenúfares da Alice. Pra você que não sabe o que é um nenúfar, é parecido, quase igual, com uma vitória régia. Os instantes são a falta, são a saudade. Eu quero o meu instante, cadê? Vala me deus, ele parece sabonete com água, e caiu justo em cima do boeiro.

O instante são os outros. O instante é sujo, é opaco e transparente. Instante não é signo, signo é o que agente descobriu pra tentar chegar no instante, mas o instante é sempre depois. E quando cheguei na loja, nem tinha o cardeninho, e eu tive que ir embora só sentido, sem palavrar.

quinta-feira, abril 06, 2006

Vento vindo de cima.

O céu lá em cima e eu todo mundo em baixo, sem daber da sua história, nem conhecer quantas lágrimas foram fabricadas. Tão artificialmente algumas vezes, mas teve vezes necessárias. Lágrimas são sempre necessárias: nos momentos certos: se for toda hora, elas irão o poder poderosíssimo que possuem since the beginning of time.

Dizia que o céu lá do alto nos observava aqui embaixo; e enquanto digo isso, observo um olho azul, na borda da praia, esperando alguém parar para me ajudar - onde estão os bons amaritanos? - mas ou não tem ninguém na praia, e somos só nós dois, ou as pessoas estão desviando as vidas para bem longe daqui. Talvez seja culpa do céu, que não pára de nos encarar.

Quero ir para bem longe e deixar esse cadáver de olhos azuis para o mar engolir.

quarta-feira, abril 05, 2006

Cinema.

Não havia nada planejado. ele nem esperava que ela dissesse sim, de tão tímido que bloqueava a luz do sol. Ela, cansada dos avanços dos chatos fortões, um carinha daquele, magrinho, não era bonito, mas também não era feio. Contudo, o filme era bom, e pelo menos ela não iria pagar, porque era daquele tipo, ela sabia. Dito e feito, nem pagou, e quase que ela testou até quando ele iria, fingindo esquecer a carteirinha de estudante. Mas era maldade demais. Vejamos o que vai acontecer lá dentro, mas isso só depois.

Antes, eu quero falar dela, de jeito meigo, arrumada, expansiva, conversa com todo mundo, não estuda na hora do recreio: recreio é recreio, não é intervalo. Tem várias circundantes, que circundam ela no recreio, mas só no recreio; na hora da aula, ela é daquelas que sentam na frente, e fica discutindo filosofia de milésima com o professor que não tem coragem de admitir que não sabe a matéria. Ela é das chatas. ele é um cdf-nerd-de-quase-fundão.

Dentro do cinema, sentaram perto da saída, que era pra ela poder ir logo simbora, se o filme ficasse chato. Ele não ia fazer nada, sabia, então isso tava tranqüilo. Poltrona macia. Ela não colocava os pés na poltrona da frente, é falta de educação. Ele não tava nem aí, mas tirava o sapato, que não tinha chulé. Deve ser aquele spray. O filme não começou, e tava naquele momento que só quem entra logo na sessão que acabaou de acabar conhece; quando não tem ninguém de antes e só depois que vão chegar os parcos outros. Ele olhou pra ela com pouco mais que um estar sentado ao lado dela. Aquela ali já era a dádiva-mor. O problema é que ele nunca se contentara com pouco, e roubou um beijo que ela nunca havia esperado, nem em um milhão de anos. Chegou o resto do povo e a história roubada acabou.

segunda-feira, março 27, 2006

Não vou publicar porra nenhuma hoje.

Se alguém me lê, desculpe o autor, fique com raiva dele, esqueça dele, afinal é um de mais tantos blogs.

Mas eu ainda rogo, do fundo da minha parca esperança, que tenha um pouco de paciência; que se alguém visitou este site algum dia de sua miserável e péssima vida que entenda que quando escrever se torna um fardo, deve-se jogar as palavras de lado por algum tempo, até que elas decidam voltar a nós. Jogo de lado minhas palavras, então, na intento de que elas não me abandonem, pouquíssimas que já são. Obrigado e boa-noite.

sábado, março 25, 2006

Dois menos dois.

Pronto? Pronto. Quando eu contar até três, tá certo? Tá certo. Tá...

Eles haviam se encontrado faz pouco tempo, na praça. Foi um só telefonema, um objetivo. Duas pessoas que não aguentavam mais. O que perderia o mundo, senão pouco menos que dois pedaços de carne, ocupadores de espaço ambulantes? Aquela era a melhor saída.

Um. Dois. Tr...

sexta-feira, março 24, 2006

Sede.

E queria porque queria. Mais do que todos os chocolates do mundo, ele queria um pouquinho, só um tiquinho de nada, mais do que uma tragada num Marlboro, mais do que um Charge, mais do que um Smash, mais do que o álbum com a adaptação do Hamlet. Mais do que tudo isso, queria.

E se lembrou daquele pergunta - uma das perguntas certas: e, por acaso, eu quero o que desejo? Leu numa capa de livro, enquanto passeava pelo supermercado Hiper, que fica do lado de um trem que corre desde Fortaleza e vai desaguar em Guaramiranga. Lá em Guaramiranga, tinha memórias de lá, sua mãe nascera lá, ele tinha raízes ainda fortes com a única rua da cidade, com a minipraça, com as casas de muros rosas, azuis, brancos, azuis e brancos; e as serras de fundo, pintadas, eram bem maiores e bem mais verdes do que via quando descia a rua da sua casa, voltando do trabalho.

No trabalho, também queria. Principalmente no trabalho, quando todos estavam digitando, ou escrevendo ou mandando alguém fazer alguma coisa ou fofocando ou bebendo água e fofocando ou pensando em mandar a loira editora tomar no maldito cu. No trabalho, ele queria: desejava.

quinta-feira, março 23, 2006

Um conto.

Eu não tenho nem vontade de escrever um conto hoje, nem inspiração, nem quero trabalhar alguma estória já contada; não tenho uma na minha caixinha de memórias, não tenho coisas aproveitáveis no meu cadernim. E quando tudo isso acontece, e que acontece é um conto tropeçando na corcunda de si mesmo, e cair gemendo - não de dor - mas das palavras mal-postas pela má vontade do palavrador.

Então quero registrar minhas mais falsas apologias a este texto tão singelo que deveria mais é calar a boca e dar graças aos céus que foi escrito! Opa, mas que bobagem eu digo: é a raiva, é a impaciência; eu que tenho que dizer obrigado ao universo por ter me escolhido para tentar colar as coisas nas palavras, mesmo aqui não sendo poesia, mesmo eu não sendo de Portugal, nem tendo bigodinho, nem minha namorada chamar Ofélia.

E não é que consegui chegar ao último paragrafinho? Às vezes, lendo algo por aqui, fico com vergonha de ter problemas em chegar ao mísero terceiro parágrafo; às vezes, quando observo algumas destas marmotas, fico pensando onde está a estória, cadê o conflito, a reflexão psicológica, e não encontro, ou talvez não saiba procurar. Mas o meu trabalho não é ficar escavando sentidos, como disse a sra. Mirella muito bem: "não vejo muito sentido em fazer sentido."

quarta-feira, março 22, 2006

Hoje não.

Chove, do lado de minha porta. Os vitrais amarelos tentam imitar o sol envergonhado, mas o transparente cede seu lugar ao cinzento de fora. Não há, faz bastante tempo, barulho de carros pela rua em frente, ou cachorros latindo para estranhos, nem fogões sendo ligados, nem campainhas soadas. Nem uma voz que não seja a do trovão lá fora, cheio, grosso; tolerante conosco, não se mostra por inteiro: filtra-se a si mesmo com uma surdez que toda chuva carrega consigo. Tantos pingos à tarde são prenúncio de noite fria, enclausurada.

A luz de meu quarto, amarelada, meu dicionário de espanhol de capa amarela, tudo são ironias para comigo, e minha rinite, essa dama angustiante, revela sua presença outra vez. Os morcegos que normalmente vejo batendo com as cabeças em minha janela devem estar juntos, entre as asas uns dos outros, esperando que este cinza barulhento vá embora, que o silêncio retorne, que os ratos saiam de suas tocas e que as baratas possam rastejar sem o perigo da corrente da calçada arrastá-las.

Hoje é um dia triste, de chuva, um dia quase preto, quase branco, um dia de dúvidas, duvidoso de si mesmo, se deveria ter nascido junto com o sol; se não seria melhor deixá-lo brilhar sozinho, junto com a escuridão da noite. Talvez a lua gostasse da companhia, mas que sei eu dos sentimentos dos astros? Não me atrevo à especulações. Hoje não.

terça-feira, março 21, 2006

A promessa que não se cumpriu.

Ela voltava da feira como Ulisses: alas, carros, rodas enferrujadas, luzes, paredes amarelas, nescafé, margarina, o que é ricota? ops, desculpe, não te vi por aí, olá como vai, tudo bem, não queria esse, era o vermelho que eu tava atrás, ó, moça, desculpa, dá pra tu tirar da notinha, por favor? Vixe, tenho que chamar o gerente, senhora, só um minutim.

Voltava satisfeitíssima pra casa, pouco mais do que feliz, acima do chão, contente consigo mesma. Mas hoje era noite de lua-cheia, ela era de peixes, e o sinal fechou. O carro morreu. Bastou isso, foi um gatilho, e a bala atravesara seus olhos miúdos e verde-amarelados: puta que porra! Carro filho da puta, deu no prego, num pode! Anda, cão! Agora, no meio da rua, Ave Maria, Oh, meu Deus, me ajuda. Oh, Senhor, hoje num podia, hoje num podia de jeito nenhum.

Nervosamente ajeitava os cabelos, enquanto os carros de trás, mais impacientes do que apressados, um pouquinho dos dois, vrumavam, um por dois, cada um pela janela dela, que já tinha feito todo mercantil do mês, custara tudo cento e vinte, tinha até comprado passatempo e prometera que hoje ela não ia chorar. Quanta ambição de sobreviver nesse mundo que não ajuda, meu Deus!

segunda-feira, março 20, 2006

Love is all you need.

- Isn't it true that very deep down inside... you know you need much more than your daddy can give you?
- ... All you need is love.

i am sam

Quando ele ficava triste, andava de ponta de pés, pra não acordar o pai. Tão pequenininho ele; filho de divorciados, e a mãe havia mudado pra Europa, isso já fazia dois meses; o marido novo era empresário e quase todo mês ele voava pra visitar. No mês de julho, ele pra ficar uma semanacom a família de lá. Na França.

Enquanto isso, o papai ficava sozinho aqui no Brasil. Talvez fosse visitar a mãe doente na antiga casa perto da Igreja Redonda, ou então ia sair mais os amigos, ir pro bar, assistir filme. Gostava de filmes complicados, que o filho nem a mulher nunca entenderam. Era cheio de DVDs na casa, Woody Allen, tinha do Buñuel, tinha do Bergman, Fernando Meireles. Gostava também do Fellini e todos com o Dustin Hoffman.

Mas, na maior parte do tempo, tudo era muito triste: durante aquele mês de solidão, ele se sentia jogado no lixo. Deve estar sorrindo e brincando em algum lugar que eu nunca vou conseguir visitar. A mãe - o novo marido dela - podia dar tantas coisas pra ele, podia oferecer tanto, mas tanto mais do que ele jamais, com salário de jornalista, poderia. Ela poderia dar tanto pra ele, talvez até amor, algum dia.

domingo, março 19, 2006

O duende bonzinho.

Todo mundo acreditava no duende bonzinho: ele morava em cima de um cogumelo vermelho com manchinhas amarelas. Tinha um rio pertinho do cogumelo vermelho, que chuava descendo, até chegar na cachoeira: chuvia lá embaixo, debaixo e entre as pedras pontiagudas. Por que todo mundo acreditava nele? Ora, porque o duende bonzinho era simplesmente vermelho de felicidade! Ele saía pulando pelos jardins verdes, entre as margaridas, entre os dentes-de-leão, pulando, saltitateando por aqui e por ali, e por acolá também. Ah, como era bom ver o duende bonzinho alegrando essa nossa mata daqui!

E um dia, não faz tanto tempo, meu filho, o duende bonzinho estava a fumar seu cachimbo, sentado no topo do seu cogumelo vermelho. Pitava e pitava, e uma fumaça que ele não queria cinza, escapava azul, roxa, anil e púrpura da boca dele. E lá do alto do céu azulão, todos os animais puderam avistar: dois pontinhos pretos sobrevoando, bem lá de cima, circulando o cogumelo do duende bonzinho. Deve ser a fumaça do cachimbo, pensaram. Mas, na mesmíssima hora, repensaram, ei, mas o duende não pita fumaça negra. Que será?

Com os olhos bem fechados, coçando os cachinhos avermelhados, descobertos do gorro verde-claro, o duende relaxava de sua última tarde de saltos. Isso aconteceu de tardezinha, pra chegar de noite. Daí, meu filho, lá do alto, os pontinhos negros foram descendo e descendo e descendo, e quando não tinha mais pra onde descer, eles olharam, com aqueles olhos grandes e maníacos que só urubu tem, pra felicidade do duende bonzinho. Vieram os dois em cima do pobre pitador, que deixou o cachimbo marrom cair na graminha verde, agora um pouco vermelha, com o dedo mindinho do duende do lado esquerdo do cogumelo.

sábado, março 18, 2006

Noir.

Max, já lhe disse que não queria mais ver sua cara feia pela minha cidade. Sua cidade? Ora, Mr. Ford, don't make me laugh! Esta cidade deixou de ser sua desde que depuseram Halford! Fumo meu cigarro onde quero, ensopo meu sapato onde quero, sujo minha barra da calça onde quiser, cheiro esgoto onde meu nariz me mandar cheirar esgoto, Ford. Crying City é terra de todos e de ninguém.

Herman Ford calou-se, olhou para os trogloditas atrás de si, soslaiou para Max Trie, pitou seu charuto e disse, gesticulando em círculos com a mão enluvada. Max, você tem razão; esta cidade não pertence a ninguém, logo pertence a todos. E, se não me foi tirado este privilégio, gosto de pensar que ainda sou membro honorário da raça humana. Logo, Crie City me pertence; é minha dama, e como tal, tenho que zelar pelo seu bem-estar, mesmo ela não sabendo diferenciar a good stuff da bad. E você, Max, é uma espinha no rosto da minha

Quer dizer que vai me espremer, Ford? Você não teria coragem de espremer o homem que está fodendo sua esposa, teria, Herman? Ora, pela sua cara, deixe-me dizer o que vejo nos seus olhos: você sabia que estava sendo traído, não por Crying, mas pela sra. Trixie Bubbles. Sabia que suas saídas às escondidas não eram ao cabeleireiro. Sabia que o cheiro de colônia na estola não fora comprado por ela. Sabia que o descaso por você era culpa de algum desgraçado que molha a barra da calça pelos becos de Crie.Mas você não sabia quem estava saboreando a moça, não é, Herman? Claro que não.

sexta-feira, março 17, 2006

A garota de Istambul.

Na Turquia, em Istambul, que já chamou Constatinopla, tem uma moça que gosta de um gatinho e de um mocinho. O nome dela eu esqueci, o nome do gatinho eu nunca aprendi e o nome do cara não importa porque ele morreu ano passado num acidente com um Fiat.

Essa moça, pois é, só tem agora o gatinho pra amar, mas ela sabe que gatinhos não vivem tanto tempo quanto a gente. Então a moça de Istambul faz assim: todo gatinho que encontra ela na rua vai logo viver mais a garota de Istambul. Já vivem na casona um bocadão: uns vinte e cinco.

Encontrei com ela dia desses. Tinha viajado pra Istambul pra conhecer o local, porque eu estava com um meu próximo livro que se passaria lá. Daí, liguei e disse pra gente se encontrar. Com meu pedido confirmado, fui entrando na casa, mas quando cheguei, estava deitada no chão, com os gatinhos rodeando. A porta escancarada, as gavetas abertas, no chão. Não tinha sobrado nada, só os gatinhos e uma amiga minha, com os cachos negros cobrindo o rostinho dela.

quarta-feira, março 15, 2006

Todynho.

Juquinha era realmente um meninozinho muito engraçado mesmo: o rapazinho não podia passar um dia que fosse sem tomar uma caixinha de Todynho. Todo dia, quando ele se cansava de brincar com os amiguinhos dele na rua, entrava pelo portão da casa e corria pra geladeira saborear aquela iguaria semi-divina, de chocolate, rica em vitaminas A, C, E, B1, B2, B3 E B6! Ah, bom demais!

E de quando em vez que a mãe do Juquinha comprava Nescau Prontinho? Rapaz, era uma putaria que eu nem te conto. Pense! O Juquinha esperneava: Mas como é que pode, que num o quê, a caixa do Todym é toda preta, toda marrom assim, mamãe! Essa aqui é toda vermelha réa! Arriégua, num quero não! Buá! E a mamãe, que num era besta nem fela da puta, mandava o menino largar de ser besta e ir comprar ele mesmo o que ele quisesse na mercearia ou tomar o que tivesse todim. O Juquinha, ah! Pense num menino morto de preguiça! Num ia e ainda gritava que num vô!

E num ia de reito maneira. Até que, depois de chorar por cinco minutinhos - menos, menos - ele escutava os amiguinhos dele chamando pra jogar Rock N'Roll Racing na casa do Alisson. Já é! E, com aquela leveza e esquecimento - o Forgive and Forget - que só quem têm são os pirrotochinhos e os que esqueceram de crescer, chispava pelo quarto e ia jogar Super Nintendo na casa do Alisson, morto de feliz. Tchau, Juquinha.

terça-feira, março 14, 2006

Coisa boa não é tarefa do destino.

Ele me deu um ovo da Garoto, mas eu disse, claramente, depois de assistir Super Size Me: "Renato, tô de dieta! Vou cortar todas as porcarias!" Mais aí, lá se vem ele, em plena páscoa, tanta hora pra ficar de dieta, com um ovo 48. "É pra gente dividir."

Puta que pariu, Renato! Tu não me ouve não, é? Tu é surdo, porra? Num disse que tava de dieta, que num ia comer mais porcaria? Que que tu tem nessa cabeça? Babaca! Num quero essa porra não! Idiota! Sai daqui! Sai! Sai! Mas eu comprei pra gente dividir, achei que tu fosse gostar. Eu num te disse, porra, que tava de dieta? Tu num tem vergonha na cara, não? Isso aí que tu tem na mão é a prova cabal da tua falta de vergonha na cara! Já te disse que não te quero perto de mim! Mas.

E ele saiu. Do quarto, primeiro. Depois, passou pela sala, abriu a porta e foi-se. Eu sei porque deu pra ouvir o barulho do portão fechando. Quando levantei, fui assoar o nariz, tomar uma dose de coca light e encontrar aquele ovo em cima da mesa de vidro da sala, me encarando. Não tinha ninguém em casa. Eu não tava de TPM. Um ventinho bateu da janela aberta e derrubou o ovo, e junto, todo o meu amor-próprio, todas as minhas certezas, toda as minhas fixações, os meus complexos, meus traumas. Meu coração implodiu de tanto peso em cima dele. Tanto peso que eu nunca soube que tava ali. Eu sempre estive cega pro meu coração. Levantei o ovo, mas não tive coragem de ligar pro Renato pra pedir desculpas. Sempre sou eu quem peço desculpas, ora mais, ele que venha aqui falar comigo. Mas ele nunca veio, eu nunca liguei, nunca me desculpei, nunca o meu coraçãozinho conseguiu se remontar de novo. Fui enterrada, quase só, junto com meu nome.

segunda-feira, março 13, 2006

Um pedacinho de papel rabiscado.

O poeta. Quase ninguém conhecera o poeta, trancado naquele apartamentozinho, com cheiro de café, pão com manteiga, cigarro, muito cigarro, várias caixas de sapato com originais que nunca foram copiados nem chegaram à primeira edição. O poeta, ninguém se lembraria dele. Nem em um dia, nem em duas semanas, nem em três anos.

Em dois anos, o poeta iria morrer de ataque cardíaco. Ele só tinha um gato completamente preto, que escolhera viver junto com o poeta. Chamava-se Meia-Noite, e ronronava quando passava por entre os calcanhares do poeta. Ele tinha os calcanhares gostosos de se esfregar. O poeta não era virgem, mas nunca mais fizera sexo depois que sua agorafobia piorou. Hoje, ele só poeta no seu apartamentinho.

O apartamentinho é alugado e o aluguel é sempre atrasado. Quando chega algum novo síndico cobrar o aluguel do poeta, primeiro ele tromba com os vizinhos que dizem que não se deve implicar com pessoas doentes. E o poeta estava doente. Depois, batia na porta e Meia-Noite - que havia atravessado o parapeito do prédio, e entrado no corredor em frente ao apartmento 132 - miava, em alarme, do mesmo jeito que os vizinhos do poeta haviam feito. O poeta, então, falava baixinho, lá de dentro, desculpa, mas eu não posso pagar com dinheiro, e também não posso sair. Posso lhe pagar com um pedacinho de papel rabiscado?

sábado, março 11, 2006

Magical Mystery Tour.

Aí vem ela. E eles.

Mas já acabou, besta.

Ná, mal não: all you need is love.

sexta-feira, março 10, 2006

A noda da manga.

Moleque, puta merda! Eu disse pra tu tomar cuidado com a noda da manga, criatura! Vem cá, deixa eu ver! Se acalma, já vai passar! Vamo pra dentro, tira a camisa, senão prega e não sai mais.

Toma, passa uma agüinha. Pegou aonde? Graças a Deus não pegou no olho. Valei-me, Lurdinha, que foi que aconteceu? Não, mulhé, ele num foi atrás de pegar manga subindo na árvore? Vala me deus. Pois é, daí ele foi comer uma em cima de um galho e bufu na bochecha dele, caiu no chão, quase que quebra o pescoço. Aqueles gritos eram dele então. Justamente: quando eu ouvi, saí correndo, e encontrei ele deitado na lama, todo sujo, gritando e gemendo com a mão no rosto e uma manga do lado dele. Virei o rostinho dele e vi um rastro de sangue descendo, mulhé. Ai, meu Cristo. Ele nem conseguia abrir os olhos direito, do sangue e da lama, Custódia de Deus. Pode continuar botando água, viu? Só saia daí quando tiver toda limpa a cara, e depois o senhor vai tomar um banho.

Ô, mulhé, num sei o que se faça com o Leandro, viu? Mulhé, ele é muito danado, Deus me livre! Ele é bem ativo, né? Demais, se você quer saber, viu? Outro dia, ele tem essa mania besta de ficar trepando em árvore, eu avisei: Leo, tu vais cair, criatura! Desce logo, anda! Fez ouvido de mercador pra mim, o moleque! E pois num foi que ele escorregou do galho, Tódi? Graças a deus deu pra segurar ele, mas ele ainda se ralou. Ô, menino safado! Já foi tomar banho, Leandro Maria dos Santos? Pois pode ir! Arriégua!

quinta-feira, março 09, 2006

A loura.

Ela saiu do banho, loiraça, de fazer toda Beira Mar ficar com torcicolo. Enrolada numa toalha rosa, aqueles cachos molhados, os olhos azuis, a boca vermelha sem batom. Um ventinho da janela esquecida aberta e zum, pernas pra que te queremos.

A televisão estava ligada. Jornal Nacional, e tinham morrido mais não sei quantos e um cineasta tinha se imortalizado na ABL. No mais, tudo que a gente não conseguia alcançar tinham pintado de cinza: um dia nublado, aqueles que a chuva tá cai-não-cai.

A loiraça, voltando para ela, que parecia ser a protagonista, sacou as unhas vermelhas e pontiagudas, apontou em direção ao homem na tela, respirou fundo, fechou a toalha, escondeu suas vergonhas, desligou a televisão e foi escovar os curtos cabelos, que hoje era.

quarta-feira, março 08, 2006

A viagem de ônibus que mudou o mundo.

Olá. Ele me disse, sentado no ônibus, segurando um saco muito grande, com uma caixa transparente dentro.

Olá. Disse eu, sentada no outro banco, o da janela, olhando pro mundo e pra mim. Brincava com o meu anel no anular.

Adeus. Ele me disse, antes de se levantar, antes de puxar o cordão para dar o sinal ao motorista de que iria descer na próxima parada: depois de pular no meu mundo e na minha vida. Adeus, eu não disse, com cara de assustada.

terça-feira, março 07, 2006

O menino gordinho.

O menino gordinho tinha um reloginho dourado com os ponteiros azuis e um sorriso vermelho. O menino gordinho acordava bem cedinho pra brincar na quintal da casa. Ficavam ele e o reloginho amarelo correndo na lama da chuva de ontem, esperando o resto do dia passar. Até chegar a hora do almoço. Aí mudava.

Na hora do almoço, o menino gordinho tomava um banho, mas não queria. Vestia uma camisetinha verde com uns pontinhos brancos, e dava pra notar bem direitinho a barriguinha dele. Escondia as perninhas rechonchudinhas com um calção todo vermelho, bem velho, e sentava na frente da bodega de paredes verdes, olhando pra cima e pra frente. De quando em vez, alguém olhava pra ele, mas aí ele já não queria mais nada e entrava pra almoçar que já haviam gritado demais por ele. Aí mudava.

Entrava, comia e eu nunca mais soube do menino gordinho, dos olhinhos pequenininhos, das bochechinhas grandes, do cabelinho crespo, curtinho. O menininho gordinho era menor que um limão. Aí mudava.

segunda-feira, março 06, 2006

Eu e o Conto.

Este conto é um conto que não é conto porque não conta nada. Ele me chamou, segunda-feira, e pediu pra mim "Me conta", e eu disse "Tá certo, eu te conto." Mas, então, ele me avisou "Mas eu não tenho nenhuma estória, como é que fica, então?" Eu ponderei um pouquinho e disse que ele não precisava se preocupar, que eu podia contar ele sem estória.

O conto acreditou. Depois, eu combinei de nós saírmos para algumas cachacinhas pra poder conhecer o continho e sentir a vibração dele, sentir como é debaixo da unha dele. Pra gente contar qualquer coisa, tem que entender a parte debaixo da unha das coisas. É ali onde todas as dores estão, mas nenhuma delas dói. As dores debaixo da unhas são as piores, porque a gente nunca sente, mas com um esforcinho, dá pra se angustiar com uma dor áspera, que corre pelo indicador, atravessa o antebraço, salta o nosso ombro e arranca nossos olhos desse mundo. As dores de debaixo da unha cegam a gente.

Me encontrei com o conto e ele me disse do que se tratava, e eu ouvi. Depois de alguns minutos de conversa, eu tive que dizer pra ele. Olha, você não é um conto. Sabe por quê? Porque você não conta nada, então não pode ser um conto, e se não és um conto, que posso fazer eu, humilde contador de causos, sem causo pra contar? E ele olhou pra mim, com os olhos quase fechados, morto de triste. Pois é, eu não conto nada, não tenho tê nem porquê. Mas é justamente essa falta de mim mesmo que eu quero mostrar pros outros. Me conta como eu poderia ser, por favor.

domingo, março 05, 2006

Talvez pressa.

Não tenho certeza do que vou sentir no enterro do meu pai.

Talvez pressa.

O que me lembra que desejo ser cremado.

sábado, março 04, 2006

O idealista ferido.

Condoreiro que só ele, vivia dizendo: "Não, mulher, nasci eu foi no tempo errado! Deveriam ter me dado à luz lá quando do Vargas, ou em sessenta e quatro! Aí sim eu prestaria pra alguma coisa! Mas agora, agora, pfft! Nadica de nada. Só merda." Era comunista, o meu marido. Ou socialista, nunca entendi quando ele me explicava, falava de umas estruturas, de um poder escondido, daquelas ideologias, cuspia quando dizia "Globo", mas era eu quem me abaixava pra limpar o cuspo do tapete.

Tinha os amigos dele, de bar, do tempo de faculdade. Eles se chamavam "condoreiros." "Por causa da ave que voa livre lá no alto, mulher! Por causa do condor! Um dia, todos os homens serão condores!" Daí, eu perguntava "E as mulheres, Fernando? Vão limpar o cocô desses bichos voadores?" Mas ele nem ouvia. Ficava discutindo política e futebol, lá no Gadelha. Voltava tarde, mas, sabe, teve uma hora que eu não ficava mais acordada esperando ele voltar. Vá pra merda, Fernando, vou dormir. Desligava o filme e ia me deitar.

Ele sempre ficava me chamando de alienada, sonsa, cega pro poder subjacente. Ora, porra! Foda-se o poder subjacente, Fernando! Eu quero meu marido dentro de casa, sem ficar se roçando nas raparigas daquele Gadelha! Tu pensa que eu não sei, é? Ah, meu filho, pois eu sou muito mais viva do que você e esse seu poder, viu? Eu enxergo as tuas fuzarcas, os teus futricos tudim, não pense que vai fazer gato e sapato dessa aqui não! E dei-lhe um tabefe nas fuças e fui-me embora pra casa da mamãe. Não encontrei ninguém quando cheguei lá.

quinta-feira, março 02, 2006

Maria, a meninazinha filósofa.

Mariazinha tentava arrancar uma casquinha de ferida. Já gastara quinze minutos na tarefa de encontrar um ponto mais sólido, abrir uma frestazinha, penetrar a unha pontuda e vermelha e ir puxando pelos lados, bem devargarzinho, revelando a pele rosada ainda em regenaração que se escondia ali.

Todo mundo sabe - inclusive a Marizainha - que não é pra puxar a casquinha de ferida antes de muito tempo, depois de estar tudo regenerado. Mas aí não tem graça - e a Marizinha sabia disso: Quando fica tudo pronto, a casquinha cai sozinha e aquele prazer sempre infantil, que tira tudo da cabeça da gente, toda preocupação com conta, todo dever de casa, tudo vai simbora quando a casquinha de ferida fica com aquela cor marrom-quase-preto e a pele avermelhada em redor. Assim ela está pronta pra sair, pra gente ficar vendo o marrom bem clarinho debaixo do marrom pretão. E a parte da ferida que ainda não começou a sarar, esse momento é que é o desorgasmo mesmo: quando a gente constata que não era pra ter arrancado aquela casquinha, mas, olha, ainda sobraram algumas partezinhas. Bem, agora que já foi a partezona embora, as partezinhas podem ir também.

A Maria já sabia de tudo, desde pequena. Sabia que o céu é azul porque quando a água bate lá do outro lado, no horizonte, como ela bate nas pedras aqui da praia, respinga no céu e fica tudo azul. Quando o dia vai passando, ela vai batendo com mais força nas pedras de lá, e molhando e pintando mais, e aí quando fica de noite, e a gente pensa que tá tudo preto, na verdade é um azul-marinho bem escuro de tanto a água molhar o céu. Ela sabia disso, e sabia que arrancar a casquinha de ferida antes do tempo é errado, mas gostoso e sabia que a parte mais sensível da gente é debaixo da unha.

Dois filhos.

Não, é, eu sei, esse negócio de fumar eu herdei do papai. Desculpa, mas todo dia, eu preciso, sabe? É como um vício. Não, é como; não é: se eu quiser parar, passar algum tempo sem, mas é ruim, entende? Mas isso não importa: te chamei para uma coisa importante. É sobre a mamãe. Calma, ela tá bem. Não, não é dinheiro, Adriano, deixa eu dizer. Não, calma, ela continua mais viva e esclerosada do que nunca. Ãh? Como assim "o papai deixou ela por alguém mais nova?" Quem mais novo ia querer o papai, Dino? Deixa eu falar, logo, porra. Daí tu pára de perguntar.

O Cássio me chamou às duas da manhã, pelo telefone da cozinha. É que eu nunca dou o da linha do quarto pra ninguém. Preservo a minha intimidade. Pois bem, ele me liga, diz que tem algo urgente pra me dizer, manda encontrar ele lá em algum café da Aldeota e desliga. Eu tive que pegar o carro da Nena, minha esposa: o meu tava sem gasolina. É bom que seja importante. O Cás tem essa mania terrível de ligar no meio da madrugada pra falar das crises existenciais dele.

Não, não, eu entendo perfeitamente. Mas não tem como o senhor... Hum, tá certo, não, claro, perfeitamente, ninguém quer causar problemas, mas tente entender a minha posição como fi... Não, mas o senhor não pode deixar ela fora do... Mas e o plano que eu pago toda porra de mês? O senhor vai ignorar desse jeito? Não, eu não acho que esteja sendo irracional! Esse tipo de operação eu tenho certeza que o plano cobre e o senhor não pode ne... Claro que não pode! Porra, o senhor não sabe o que vai acontecer se ela não retirar aquele negócio do ovário dela, então? Não sabe? Vocês médicos são todos iguais... Não, não quero nenhum tratamento, nem endereço de funerária nem nada! Passar bem! Não acredito nisso, Ave Maria. Vou ligar pro Dino.

quarta-feira, março 01, 2006

A história do cachorrinho que foi encontrado na rua por uma criança abandonada e juntos formaram uma família.

Abriu a lata de coca-cola com o tsss habitual. No meio-dia, eles não almoçavam. Ficavam em silêncio, tentando adivinhar o que o outro pensava. O cachorro não participava da brincadeira, já que ela era latente. Eles que falavam pouco, e se amavam demais. Todo mundo sabe que os melhores amantes são os silenciosos, com além-olhares e cheiros nos lugares certos.

A mesa era pequena, marrom, com uma toalha vermelha e branca por cima. Ficavam brincando com os pés um do outro debaixo. Essa o cachorro entendia e de quando em vez se enroscava entre os dedos de um.

Mas um dia tudo acabou: ela cortou o cabelo, tirou a maquiagem, fez musculação e virou lésbica. Ele entrou pra KKK e nunca mais os dois se viram.

terça-feira, fevereiro 28, 2006

Um dos muitos não-diálogos dos amantes.

Gostava de fio-terra. Quando ela tocava gentilmente, depois girava o dedo com uma quase raiva, puro prazer, fechava os olhos, soltava os ombros, beijava: mordia.

A cama, pequenina, era de solteiro. Sempre estava cheia de papéis, livros, cadernos, calculadoras, um rádio.

Depois, nenhum fumava. Ela se levantava, ia beber uma coca-cola light, terminar algum trabalho da faculdade. Ele procurava os óculos de aro grosso e ia tomar um banho.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Separação.

A culpa não é minha, ele dizia. E perguntava se queria me fazer mal. Perguntava se algum dia pensou que talvez a intenção não importasse nenhum pouco quando se trata de me ferir, de esquecer a mãe dele nas Americanas, de esquecer as chaves do carro pela casa todo dia, toda hora, só esperando pela hora errada acontecer.

E ainda era ignorante. Cresci com meu pai sendo ignorante comigo, sei lidar com eles. Cresci dilacerado entre meus pais: uma perguntando todo dia se eu ainda amava a mamãe; o outro, com aquele cheiro meio-perfume, meio-cachaça, me chamando bem ali para me perguntar se já havia comido boceta. Ou pegar um copo de sorvete. Conhecia ele, bem mais do que ele achava, mas bem menos do que eu desejava. Ele era egoísta, ele era desatencioso, ele era carinhoso. Eu achava que. Mas não era, porque se for pra mudar, as pessoas mudam por quem amam, se for amor mesmo. Não era.

Disse a ele que deveria se cuidar, deveria ser mais organizado, mas continuava se escondendo atrás da doença, a culpa não era minha, é o meu psisquismo, é aqui dentro. Ele ainda não havia descoberto o poder das palavras; que quando a gente diz que o problema é meu, e que o problema sou eu são duas coisas diferentes: a minha mente está doente, eu estou doente. Não importa, eu quero que você pare de falar comigo porque eu sou linda e não nasci para aguentar abuso. Adeus.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Testamento.

Quando eu morrer, não quero que me sejam lembradas as lágrimas. Não quero fotos taciturnas, sisudas penduradas em cima da mesa bege, com um marido de roupas escuras falando como era bom quando tinha ela aqui com a gente pra alegrar a casa, mas agora. Não, não quero isso.

Não quero me juntar aos vermes debaixo da terra, não quero: sou uma parte claustrofóbica, ou ainda pior, quem sabe, se me enterrarem, posso ficar por inteira. Não me enterrem. Queimem-me, joguem as cinzas no mar; não guardem-me num pote dourado sobre aquela mesa bege. Tudo que peço é que me deixem livre, que me unam ao vento mais uma vez, pela última vez, uma única vez. Peço uma única chance para viver o que não vivi quando deveria: meu pedido, caros, é um cumprimento de meu dever que protelei toda minha vida.

Podem pendurar fotos minhas, podem carregá-las nas carteiras, nos colares, podem lembrar-se de mim, mas as fotos tem de ser coloridas, nem que esteja chorando, tem de ser alegres, nem que não esteja sorrindo, tem de ser brilhantes, mesmo que seja ao pôr-do-sol. E lembrem-se de mim, podem lembrar-se das partes ruins, mas não se concentrem nelas: pensem nos momentos bons, nos momentos de brincadeira, é aí que eu vou morar, é pra aí que eu vou agora, pra saudade: a gente não tem saudade do que é ruim, por isso peço que me lembrem com alegria, porque eu preciso da saudade pra entrar no coraçãozinho de cada um de vocês e ficar de olho no espírito de cada um, tomar cuidado pra ele não adoecer. É isso que eu quero. Beijos a todos vocês, amo todos.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Dia-a-dia, todo dia.

Todo dia, quando me levanto, tenho uma dor nas costas. Lanço os pés pra fora da rede, pisco os olhos que se recusam a ficar em pé e saio andando até o banheiro. Mijo, balanço, coloco a cueca no lugar e vou até meu quarto assistir as terríveis aventuras de Billy e Mandy. O almolço já está pronto.

São doze horas e já perdi toda a manhã, mas não faz mal: ganhei a noite, boa parte dela, assistindo, escrevendo, bocejando, espatando murissocas e aqueles insetos enormes que a chuva trás e ficam zunzunando na lâmpada amarela do meu quarto. Eu já disse pra mamãe que seria muito melhor deixar a antiga fosforecente, mas a preguiça misturada com o medo tem um poder de persuasão que deus me livre.

O dia continua, nada de novo, férias. Pra quebrar um linha reta, eu pergunto: onde está o caos, aqui dentro? Lá fora? Lá fora é longe demais pra uma criança. Mas ser criança, meu caro, é isso mesmo: é entrar demais no mar, é não ter medo de ondas, é gostar quando vem uma bem fortona e te leva pra longe; é voltar a pedalar, mesmo depois de se tacar no chão de cimento pontiagudo. É ir lá fora, longe demais. Mesmo com dor nas costas.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Melenas.

Claro que sim, era ela. Não pude acreditar. Tão cortada pelo tempo. As feridas sangravam, mas caminhava, convalescente, pela calçada.

O mar, mais do que tudo, sem sangue que não nosso, continuava.

Mas era verdade: quem não soubesse, seria quase um cego. E aquele cheiro, quase um perfume, me subia pelos cabelos, reencontrava-se com o ar, voltava ao vazio de que tinha saído: alguns parcos olhos de moça.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Café e cigarros.

Colocou o cigarro no cinzeiro, daqueles prateados escuros, que a luz não faz brilhar. Disse tudo que não queria ouvir: como te adoro, como preciso de ti, dos teus lábios, tuas coxas, tuas bochechas, do teu cheiro quando acordo. Preciso de ti, mais do que qualquer outra pessoa jamais precisou de alguém em toda a história conhecida e desconhecida. Estórias dele.

Mas eu já estava ali, perdida, encontrada no meio da tanta fumaça do bar. Era um local cult, de nariz empinado, lá na Aldeota: toda quinta havia jazz; no térreo, embaixo da cafeteira, uma galeria de arte. O Expresso deveria custar 1, 90. Ele gostava de me levar lá: não podia pagar nada, então me possuía pelo dinheiro. Isso ele não me disse, mas o olhar dele, ávidos e simples gritou.

Disse tudo que não queria ouvir: não sou uma destruidora de lares, não quero relação contigo, só quero teu dinheiro, nem teu corpo caído, flácido me interessa mais. Ele, surdo pelo meu decote e o capuccino na mesa, só ouviu algo sobre um corpo, que queria mais. Deve ser o dela, pensou. Fiquei indignada: nem ele me escutava. Resignei, peguei o cigarro e um outro gole do Expresso.