quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Uma história de Gisela

Ouviram pelo rádio que não havia sobreviventes, e Gisela caiu-se aos prantos no meio da sala, esquecendo de segurar o prato com as xícaras de café, inundando o carpete. A família se levantou dos sofás e cadeiras para acudi-la. Apoiada no braço do sofá, só conseguia respirar entre os soluços. E a família nem estava toda lá: quem faltara era o filho de Gisela, Silveira. Menino bom, da marinha. Viajara ao Rio para visitar o pai, que tinha acrofobia.

Deu no que deu: Silveira foi, e deveria voltar de avião.

Mas Silveira nunca foi encontrado. Simplesmente foi esmaecendo da memória de todo mundo, menos da de Gisela, sua mãe, que nunca conseguiu secar decentemente o carpete e pegou trauma do cheiro de café.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Jogando fora os impressionismos gordos

(Na cozinha, olhando para cima) Tem uma luz aqui em casa que passou muito tempo queimada, sem ninguém com coragem de trocar. Aí trocaram. O negócio é que agora ninguém mais usa ela: fica parecendo outra casa, outro lugar, estranho, até assustador, é a nossa casa, mas não é a nossa casa, sabe?

(No quarto, deitado, olhando pra rede) Os mosaicos da rede são como vários olhos arregalados, assustados, negros e hipnotizados, saídos de um pesadelo para me atormentar o sono, a noite; noite de lua nova, envergonhada, agonizante, tímida, fraca, que definha. Mil olhos me perscrutam.

(No quarto, abrindo o plano: analisando o som, a matéria se contraindo, saindo só do olhar) O som contínuo do ventilador no quarto pequeno é um mantra: fraco, depois se intensifica ... para enfraquecer novamente; os barulhos do prédio se contraindo no frio da madrugada são fantasmagóricos, impossíveis; janelas sendo fechadas, buzinas o ventilador, algum alarme de carro, um burro relincha - não conhece a hora de calar. Alguém vai ao banheiro, o cachorro se espreguiça, a lua se esconde entre as nuvens, o portão se abre, o namorado volta para sua casa. Madrugada adentro, o inevitável ranger dos armadores no suporte velho e sem óleo.