sexta-feira, abril 14, 2006

Fábula sem pé nem cabeça.

Há muito tempo, quando ainda havia pessoas que sabiam das coisas, num reino distante, morava, sozinha, a menina sem gratidão. Todo dia, alguém vinha, e deixava comida na porta da torre, e ela sabia que sempre que abrisse a porta àquela hora, iria encontrar um prato bem gostoso: macarrão, pizzas, bananas, maçãs - às vezes, tudo misturado. E acreditava que tudo aquilo era só pra ela, que era mágica.

Mas era o jovem mensageiro quem sempre pagava o pato. Ou prato: não ganhava gorjeta, passava um tempão esperando alguém vir pegar a entrega, e nunca ninguém chegava. Ia embora, mas no outro dia, o prato havia sumido e lá ia ele explicar pro cozinheiro que alguém roubara o prato. Mas como você me perde um prato cheio de tanta comida, rapaz?! Mas não há ninguém naquela torre, senhor! Nunca vi ninguém lá, nem pela janela, nem à porta! E o senhor ainda me paga pouco e eu tenho que andar dez quilômetros todo dia, pra deixar comida pra ninguém! A culpa não é minha!

Nunca mais se ouviu falar do jovem mensageiro, depois desta discussão. E a menina do alto da torre amaldiçoou deus e o mundo. Morreu de inanição, sozinha, com os ratos, do alto daquela torre escura, numa noite de chuva parca.

segunda-feira, abril 10, 2006

O cadernim.

Foi atrás daqueles caderninhos de anotações, que o último tinha acabado, só algumas folhinhas no final. Tinha que ser daqueles peuqnininhos, pocket, de poder levar mesmo no bolso, pra sacar na hora que a Hora se cristalizar em galhos, em olhares, em ruas. Os caderninhos são pra agarrar o rastro de poeira do instante.

Os instantes são os nenúfares da Alice. Pra você que não sabe o que é um nenúfar, é parecido, quase igual, com uma vitória régia. Os instantes são a falta, são a saudade. Eu quero o meu instante, cadê? Vala me deus, ele parece sabonete com água, e caiu justo em cima do boeiro.

O instante são os outros. O instante é sujo, é opaco e transparente. Instante não é signo, signo é o que agente descobriu pra tentar chegar no instante, mas o instante é sempre depois. E quando cheguei na loja, nem tinha o cardeninho, e eu tive que ir embora só sentido, sem palavrar.

quinta-feira, abril 06, 2006

Vento vindo de cima.

O céu lá em cima e eu todo mundo em baixo, sem daber da sua história, nem conhecer quantas lágrimas foram fabricadas. Tão artificialmente algumas vezes, mas teve vezes necessárias. Lágrimas são sempre necessárias: nos momentos certos: se for toda hora, elas irão o poder poderosíssimo que possuem since the beginning of time.

Dizia que o céu lá do alto nos observava aqui embaixo; e enquanto digo isso, observo um olho azul, na borda da praia, esperando alguém parar para me ajudar - onde estão os bons amaritanos? - mas ou não tem ninguém na praia, e somos só nós dois, ou as pessoas estão desviando as vidas para bem longe daqui. Talvez seja culpa do céu, que não pára de nos encarar.

Quero ir para bem longe e deixar esse cadáver de olhos azuis para o mar engolir.

quarta-feira, abril 05, 2006

Cinema.

Não havia nada planejado. ele nem esperava que ela dissesse sim, de tão tímido que bloqueava a luz do sol. Ela, cansada dos avanços dos chatos fortões, um carinha daquele, magrinho, não era bonito, mas também não era feio. Contudo, o filme era bom, e pelo menos ela não iria pagar, porque era daquele tipo, ela sabia. Dito e feito, nem pagou, e quase que ela testou até quando ele iria, fingindo esquecer a carteirinha de estudante. Mas era maldade demais. Vejamos o que vai acontecer lá dentro, mas isso só depois.

Antes, eu quero falar dela, de jeito meigo, arrumada, expansiva, conversa com todo mundo, não estuda na hora do recreio: recreio é recreio, não é intervalo. Tem várias circundantes, que circundam ela no recreio, mas só no recreio; na hora da aula, ela é daquelas que sentam na frente, e fica discutindo filosofia de milésima com o professor que não tem coragem de admitir que não sabe a matéria. Ela é das chatas. ele é um cdf-nerd-de-quase-fundão.

Dentro do cinema, sentaram perto da saída, que era pra ela poder ir logo simbora, se o filme ficasse chato. Ele não ia fazer nada, sabia, então isso tava tranqüilo. Poltrona macia. Ela não colocava os pés na poltrona da frente, é falta de educação. Ele não tava nem aí, mas tirava o sapato, que não tinha chulé. Deve ser aquele spray. O filme não começou, e tava naquele momento que só quem entra logo na sessão que acabaou de acabar conhece; quando não tem ninguém de antes e só depois que vão chegar os parcos outros. Ele olhou pra ela com pouco mais que um estar sentado ao lado dela. Aquela ali já era a dádiva-mor. O problema é que ele nunca se contentara com pouco, e roubou um beijo que ela nunca havia esperado, nem em um milhão de anos. Chegou o resto do povo e a história roubada acabou.