sábado, fevereiro 09, 2008

A canção que todos conheciam

Era uma vez uma família que viajava: iam os três, a mãe, o filho e a filha no carro vermelho e compacto a subir pela rua. Eles cantavam uma canção antiga, que todos conheciam e já haviam cantando em outras viagens, bem parecidas com esta.

A filha, vestida com uma macacão azul desbotado, batia palmas e cantava alegre. Até que, por alguma razão, ela parou de cantar a canção que todos conheciam e passou a cantar uma canção triste, ao que a mãe e o filho se assustaram. O susto, contudo, não foi suficiente para perderem a atenção que aquela nova canção despertava em seus corações.

Cantava ela, baixinho: you close your eyes, you shake your head // you hope it goes away // the monster closes in on you // still hope it goes away // you touch your heart, you hold your breath // it doesn't go away // he looks at you, you start to cry // but it'll never go away...

terça-feira, dezembro 25, 2007

Diamonds and rust

A lembrança guardada. Era uma vez um quarto de dormir no qual havia uma pequena foto de um lago ao crepúsculo. De moldura reatangular simples, marrom escura, sem ornamentos, acima de um criado-mudo postado aos pés da cama, pendurava-se o quadro; quem passasse os olhos pela parede e encontrasse com a pequena imagem no caminho, não notaria nada de estranho.

A lembrança lembrada. Certo dia, entraram no quarto e olharam - de verdade - para a foto, que não mostrava um lago ao crepúsculo, mas algumas árvores de folhas amarelas balançando; aproximaram-se, e viram o começo da orla do lago: azul, com leves ondas criadas pelo vento; ficaram de frente, apoiando as mãos no criado-mudo - sem piscar - observando como, à medida que movia-se a cabeça, poder-se-ia ver, claramente, todo o local da foto, como uma janela.

A lembrança esmorecida pelo tempo e pela morte. Chamaram todos da casa para verem e, contudo, ao chegarem para perscrutar o sortilégio, a mágica havia partido. Sobrara somente uma moldura velha, vazia, sem lago ou crepúsculo ou mesmo uma pequena imagem amarelada que fosse.

domingo, dezembro 09, 2007

Não acreditava em sinestesia. Bem-te-vis batendo-se contra janelas não lhe aguçavam a percepção e não tinha momentos solitários, próximo a janelas, por exemplo: epifanias que transcendescem sua alma para depois das córneas, tímpanos, narinas, papilas e unhas. Nada disso. Não queria saber das maravilhas sensoriais de seu-ninguém e estava muito bem obrigado.

Trabalhava das oito da manhã; almoçava em miúdos, e voltava ao labor, até tocarem as três da tarde: quase sete horas de trabalho, pensou certa vez. Pensava muitas certas vezes; e muitas vezes pensava em suas sete horas de trabalho, e em nada mais, óbvio: não tinha momentos solitários, e seus olhos eram voltados para fora. Para os dedos e as paredes de sua sala, por exemplo. Paredes marrons ou castanhas - cor de olho de mulher, pensava, certas vezes, mas sempre com os pés no chão.

Certz vez, como de costume, pensava. Estava atrasado, e pensava, enquanto andava pulando, observando o relógio. Pensava em como se atrasara. Como pode? Tentou descobrir pensando, e pensou nas paredes da sua sala: cor-de-olho-de-mulher, lhe esperando, sorumbáticas, longas, desacostumadas com o silêncio sombrio, a escuridão maciça; a solidão acre de um local bem-fazejo, onde um homem pode ficar sentado, trabalhando solitário e pensando, certas vezes, no castanho-marrom de seu pequeno santuário de sete horas e um almoço em miúdos.

sábado, setembro 22, 2007

Ela disse que o amava agonizando. E deixou cada fio de lágrima formar uma vereda úmida na sua pele, como um rio de chuva que nasce, descobrindo a terra seca. Como era ela seca! E cansada, e longa, e última! Como ela era subtância desgastada e caminhos por entre as bochechas lavradas de lágrimas.

Ela pranteava cada momento em que se deixava abrir seus caminhos na frente dele: cada parte de si ficava à mostra quanto mais a verdade mortal daquele amor abraçava seu peito. Tinha raiva daquele amor. Sabia que não amava bem, e sabia que não podia amar de outro jeito.

E sabia que ia terminar da única maneira que aquele amor podia terminar: da mesma maneira que o melhor dos amores termina; da única maneira que o amor desvelado pode terminar: e aquela lembrança, que iria restar por tudo que foi, nunca, nunca se tornou saudade.

quinta-feira, julho 19, 2007

A hora de Wilson

A hora, como todas as outras horas, havia se aproximado e Wilson, não sendo bobo nem nada, decidiu por fazer o que fizeram os garotos do Dead Poets Society: to seize the day.

A vida nunca foi tão bela; os lagos, nunca dantes navegados, eram cristalinos; os problemas, pouco mais que uma caminhada de distância da resolução; os beijos! ah, os beijos... tudo encaixava-se num quebra-cabeça latente. Wilson regojizava-se da descoberta deste seu lado perfeito e semi-divino, praticamente eterno.

Chegou, então, a hora de Wilson, e como tudo nesse mundo de palavras e pontos-finais, acabaram-se seus lagos nunca dantes cristalinos, seus problemas resolucionados, sua vida tão-bela, seu beijos - ah, seus beijos... - O quebra-cabeça a hora desmontou sem guardar de volta na caixa, deixando as peças jogadas pelo chão do apartamento alugado.