quarta-feira, março 22, 2006

Hoje não.

Chove, do lado de minha porta. Os vitrais amarelos tentam imitar o sol envergonhado, mas o transparente cede seu lugar ao cinzento de fora. Não há, faz bastante tempo, barulho de carros pela rua em frente, ou cachorros latindo para estranhos, nem fogões sendo ligados, nem campainhas soadas. Nem uma voz que não seja a do trovão lá fora, cheio, grosso; tolerante conosco, não se mostra por inteiro: filtra-se a si mesmo com uma surdez que toda chuva carrega consigo. Tantos pingos à tarde são prenúncio de noite fria, enclausurada.

A luz de meu quarto, amarelada, meu dicionário de espanhol de capa amarela, tudo são ironias para comigo, e minha rinite, essa dama angustiante, revela sua presença outra vez. Os morcegos que normalmente vejo batendo com as cabeças em minha janela devem estar juntos, entre as asas uns dos outros, esperando que este cinza barulhento vá embora, que o silêncio retorne, que os ratos saiam de suas tocas e que as baratas possam rastejar sem o perigo da corrente da calçada arrastá-las.

Hoje é um dia triste, de chuva, um dia quase preto, quase branco, um dia de dúvidas, duvidoso de si mesmo, se deveria ter nascido junto com o sol; se não seria melhor deixá-lo brilhar sozinho, junto com a escuridão da noite. Talvez a lua gostasse da companhia, mas que sei eu dos sentimentos dos astros? Não me atrevo à especulações. Hoje não.

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