quinta-feira, março 02, 2006

Maria, a meninazinha filósofa.

Mariazinha tentava arrancar uma casquinha de ferida. Já gastara quinze minutos na tarefa de encontrar um ponto mais sólido, abrir uma frestazinha, penetrar a unha pontuda e vermelha e ir puxando pelos lados, bem devargarzinho, revelando a pele rosada ainda em regenaração que se escondia ali.

Todo mundo sabe - inclusive a Marizainha - que não é pra puxar a casquinha de ferida antes de muito tempo, depois de estar tudo regenerado. Mas aí não tem graça - e a Marizinha sabia disso: Quando fica tudo pronto, a casquinha cai sozinha e aquele prazer sempre infantil, que tira tudo da cabeça da gente, toda preocupação com conta, todo dever de casa, tudo vai simbora quando a casquinha de ferida fica com aquela cor marrom-quase-preto e a pele avermelhada em redor. Assim ela está pronta pra sair, pra gente ficar vendo o marrom bem clarinho debaixo do marrom pretão. E a parte da ferida que ainda não começou a sarar, esse momento é que é o desorgasmo mesmo: quando a gente constata que não era pra ter arrancado aquela casquinha, mas, olha, ainda sobraram algumas partezinhas. Bem, agora que já foi a partezona embora, as partezinhas podem ir também.

A Maria já sabia de tudo, desde pequena. Sabia que o céu é azul porque quando a água bate lá do outro lado, no horizonte, como ela bate nas pedras aqui da praia, respinga no céu e fica tudo azul. Quando o dia vai passando, ela vai batendo com mais força nas pedras de lá, e molhando e pintando mais, e aí quando fica de noite, e a gente pensa que tá tudo preto, na verdade é um azul-marinho bem escuro de tanto a água molhar o céu. Ela sabia disso, e sabia que arrancar a casquinha de ferida antes do tempo é errado, mas gostoso e sabia que a parte mais sensível da gente é debaixo da unha.

Nenhum comentário: